Sunday, April 21, 2013

As rolas do Tejo

Da janela da minha sala aceno agora ao Tejo.
Pelo meio tenho uma árvore. Alta, mas magrinha. De cabelos desalinhados. Para falar a verdade, os cabelos estão mais é desgrenhados, coitadinha. Quem tem vindo aqui a casa implica um bocadinho com esta árvore. Até já há projectos de descer ao quintal numa noite inebriada para dar conta dela. Projectos (masculinos, pois claro!) de descer até ao quintal pela calada da noite, fazer uso a uma motosserra silenciosa (e que não existe!) ou, quem sabe, verter um pouco de cicuta ou qualquer substância pouco simpática assim.
Mas eu não assino esse projecto.
A pobrezita já teve melhores dias, é bem verdade, a avaliar pelas folhas castanhas nas pontas que não se deixaram seduzir pela Primavera. A sua inclinação, ligeiramente à direita, parece ser mais vontade do vento e do solo que do seu próprio vigor. Acho até que está tão frágil que me sinto incapaz de culpabilizá-la pelas crises de alergia que são trazidas pela estação.
Mas a árvore do quintal do rés-do-chão é também a casa de alguns pares de rolas. Turtledoves, em inglês, um nome com mais ritmo e mais poesia. Só por isso, a árvore cabisbaixa (apesar de alta como a ponte encarnada e como o Cristo Rei, na escala em que eu os avisto desde a minha janela), ganha o seu direito a estar aqui.
As rolas não se deixaram desanimar pelas folhas castanhas apáticas e moles de que até a própria árvore parece ter desistido. Emaranharam-se lá para o meio e até construíram ali o seu ninho.
De amanhã acordo com o cantar das rolas, que é suave e “melancólico” (como se diz por aí na world-wide-web). É que de manhã, quem sabe para me acordar, elas aventuram-se para lá do terceiro andar, trocam o bairro tranquilo das ruas numeradas pela maior confusão da rua principal, dão a volta ao prédio por cima, e vão ali ao meu quarto bater na janela. E ficam ali um bocadinho, num toc-toc-toc suave, que me abre um olho e depois o outro. Num toc-toc-toc de manhã de Primavera, num trruu-trruu-trruu de melodia de Primavera.
No Reino Unido diz-se que as turtledoves estão a desaparecer e há até já um projecto de recuperação, há toda uma equipa, todo um voluntariado. Até já há os “Turtledove heroes”.
Por isso, esta árvore-arbusto-daninho que todos querem tirar daqui da minha vista sobre o Tejo, é um pequeno privilégio meu. Nesta árvore desengonçada, esta alegre vizinhança primaveril constrói o seu amor. É que os laços que o rolo e a rola tricotam entre si são fortes e duradouros. É amor de Primavera e não de Verão. (E, contou-me o meu Jacarandá, o amor de Primavera é daqueles para guardar. Para sempre.) 
É... As rolas que por aqui se passeiam, que saltitam alegremente entre os ramos velhos da árvore, os fios da electricidade e, ocasionalmente, o parapeito da minha janela, é um dos pequenos luxos desta minha Lisboa, mais bairrista que capital.
Além disso... O Tejo continua ali. A banhar a minha árvore desengonçada. A escorregar debaixo da ponte. A chegar ao Bugio e ao mar.
E a acenar-me a mim e à minha janela. 

Sunday, September 25, 2011

Pelo andar da carruagem...

Pelo andar da carruagem… a carruagem parou. Já lá vão uns tempos valentes. As causas apontadas foram as mais diversas, segundo disseram. Ora a neve a bloquear os carris (esteve muito na moda no Inverno passado), ora a subida do preço do carvão (para quem não sabe, esta locomotiva ainda toca a vapor), ora a interrupção da ligação que fazia (a chegada anunciada do TGV condenou as locomotivas ao desuso e à obsolescência). Bem, ninguém sabe ao certo, mas o que é certo é que parou.

A locomotiva continuou sem ela. A vida não pára, não é? E também não espera. Portanto lá continuou, deixando empanada a pobre da carruagem. Era vê-la ali no meio do nada, a tiritar de frio, abraçada a si, ervas daninhas a crescer pelas rodas e a trepar pela cabine. Passaram-se três Primaveras, três Verões, dois Outonos e dois Invernos e a pobre… ali.

No fundo, todos sabiam que o que ela precisava era que a locomotiva caísse em si e viesse chamá-la de novo para a roda. Viesse buscá-la para dançar. Soubera ela (a locomotiva) antes que a varinha estava do seu lado e já teria ido mais cedo. Mas a pobre é fraca a ler sinais… Mas, ainda que tarde, lá deu vida ao gira-discos, lá pôs a vida (ai, a música) a tocar. A carruagem, meio tímida, quis contagiar-se pela música, e, pouco a pouco, começou a abanar(-se) – primeiro a ré, depois a proa, as rodas foram, uma a uma, rasgando as ervas daninhas que as acorrentavam, tudo devagarinho, muito devagarinho, (para não chamar muito a atenção…).

Enfim. Ela só precisa de tempo. Só que nos tempos que correm ela anda marafada com ele. «Malfadado do Tempo, tece tudo e todos! Faz gatosapato da vida e não dá os ponteiros a torcer (seus minutos, horas, dias, meses, anos a multiplicar…)!»

Mas é assim o tempo. É assim a vida. E assim seguirão sendo.

(Pelo andar da carruagem…)

Friday, April 17, 2009

Pé Descalço no Muro

Menina que passeava, ausente, sobre o muro. Para lá. E para cá. Para lá. E para cá.

Abria os braços, mantendo o equilíbrio, e corria o muro desligada. Invulgar o equilíbrio na sua natureza desajeitada – aquela que não lhe permitia aprender a atar os cordões dos sapatos, a mesma que lhe dificultava o desenho de uma linha recta, a mesma que espicaçava o seu desempenho nas tarefas domésticas. Desajeitada, trapalhona, trôpega, estouvada.

Mas naquele muro não. Naquele muro ela flutuava, flutuava. Trauteava uma canção. Flutuava, flutuava… Braços que se abriam em asas. Flutuava, flutuava… E assim se fechava nesse mundo tão seu. Em cima do muro. Para lá. E para cá. Para lá. E para cá.

E enquanto percorria o muro que de velho se desfiava, enquanto abria os braços e voando flutuava, enquanto escolhia a canção que baixinho trauteava, enquanto fechava os olhos e sem temer se equilibrava, a sua cabeça manivelava histórias com princípio, sem Fim.
Fazia, sentia, existia. Imaginava, sonhava, vivia. Num vazio de nãos, um oco de nuncas, um vácuo de finais. Tudo se dava. Tudo se podia. Tudo acontecia.

Em cima do muro, enquanto flutuava. Para lá. E para cá. Para lá. E para cá.

Muro que conhecia os seus pezinhos, muro que vigiava o seu passo, muro que a levava ao colo, muro que guardava os seus segredos. Muro velho, muro cansado, muro amigo. Que além-sonhos roubava o prefixo ao Impossível.
Doce engano, doce ilusão, fábula, fantasia... Não faz mal...

Desde que ajude a adormecer.

Thursday, January 22, 2009

A vista do Monte Molião

Subiu a custo aquele monte salvo pelos achados arqueológicos de outro tempo. Já não era miúdo. Quando chegou ao topo olhou em volta, ainda havia tempo antes de começar. Sentou-se naquele rochedo com o miúdo ao lado e ficou a observar enquanto as máquinas pesadas, agressivas, violentas se aproximavam com tudo menos boas intenções. O miúdo olhava sem perceber muito bem o que se passava. E ele começou a contar…

Quando era pequenino, assim, quase do teu tamanho, eu, o Tio Frederico, o Tio Miguel e o Tio Kiki fazíamos muitas travessuras na Quinta. Éramos terríveis! Bem, o Tio Miguel e o Tio Kiki eram piores, mas quando nos juntávamos os quatro, o pobre do João Borralho não tinha sossego.

Ele ria-se. O filho também.

– Mas o pior de todos, o pior de todos! Adivinha lá quem era!
– O Tio Kiki!,
dizia o miúdo.
– Com aqueles óculos de fundo de garrafa, aquele ar meio encolhido, o mais pequenino de todos, era é um belo sonso! E nessa vez, estávamos em casa, todos em sentido. Avizinhava-se uma tarde pacífica, sem confusão, quando o Tio Kiki chegou à sala ao pé de nós e nos disse: “Aí! Nem sabem! Vão deitar abaixo a casa do João Borralho!”. A casa do João Borralho não era a casa em que ele vivia, mas era onde ele guardava os sacos de farinha, de batatas, os cestos, as hortaliças, os caixotes e toda a tralha e mais alguma. Estava sempre empoeirada, cheirava a mofo! E nós chamávamos-lhe a casa do João Borralho.

E depois o Tio Kiki continuou, ele era assim (ainda é!), sempre cheio de ideias… “Sabem o que é que podíamos fazer?! Podíamos ajudá-los! ‘Bora atirar pedras ao telhado! Assim é mais rápido!” E nós que queríamos é brincadeira fomos todos atrás. Todos contentes da vida! Pegámos naqueles pedregulhos e começámos a atirar ao telhado e a partir as telhas! Todos às gargalhadas! Ninguém deu por nós… Nem os nossos Pais, nem os Avós, nem o pobre do João Borralho…

E disse o miúdo sorrindo…

– Asneeeeeiraaaaa…
– Grande asneira! É claro que o João Borralho não tardou a descobrir a travessura, correu logo a contar à Avó Graça, e enquanto a Avó Graça se arranjava com o senhor e pagava as telhas destruídas, nós arranjávamo-nos com os nossos Pais! E que arranjo! O quarteto todo de castigo! E a culpa foi do Tio Kiki! Já nem me lembro que castigo foi… Mas de certeza que foi duro!

O miúdo ria, ria…
E ele suspirava enquanto olhava em frente para as máquinas cada vez mais ameaçadoras, destrutivas… Coitado do João Borralho..., pensava.

– Oh Pai… Mas se vocês partiram as telhas do João Borralho e ficaram de castigo, aqueles homens das máquinas que estão a partir a Quinta também vão ficar…?

Ele olhou o filho e afagou-lhe os cabelos, com um aperto na garganta, um encolher de ombros, e mais uma vez, sem resposta. Depois abriu a sua cerveja e virou-se na rocha servida de assento. O Esperança estava mesmo a começar.

Wednesday, September 10, 2008

Um Barco à Vela

Há já algum tempo que não fazia uns desenhos. Ora, logo eu que passava aulas inteiras a rabiscar bonecadas nos cantos das folhas dos cadernos e nem sequer poupava os livros (ganhei-lhes o respeito um bocadinho mais tarde).

Inspirada pelo passeio que me deu o adeus às férias no barco do Tio Zé (segundo a Tia Mimi, o Joe Dalton dos quatro irmãos), na alegre companhia dos Discípulos de Baco, também conhecidos pelos Pimentas de Lagos (segundo o Padre Veiga, os “Pimentinhas”), ou então, dentro do clã, simplesmente por "os Almeida Borges" ("Este gaiato é Borges, é ruim!"), apeteceu-me ensaiar um barco à vela.

Como é que de um barco à vela sai uma espécie de coisa – é que nem chega a ser coisa! – com focinho de rato de desenhos animados, orelhas de coelho, e uma asa de galinha…?! Não faço ideia… Talvez o Professor Mário Boniné (Deus o tenha…) tivesse razão… Não nasci para o desenho. (Depois ensinas-me a desenhar uma caravela, está bem Tomás?!)

Ao menos nunca me deu para escolher qualquer coisa como Arquitectura ou Belas Artes. É que às vezes esse tipo de contradições acontece. Como daquela vez em que quis ser hospedeira da TAP, levando na cabeça durante todo o processo de selecção “É desta que perco o medo de andar de avião!”. Mas imagino que não fosse a minha cara aquela que um passageiro medroso quisesse ver em alturas de turbulência. Capaz era eu de ser a primeira a agarrar nas máscaras e nos coletes e outros tantos acessórios que pouco fazem para nos fazer sentir mais seguros num aparelho em que nada depende de nós, e gritar “Oh meu Deus, vamos cair!” (vá… gritar também não…).

Enfim… Na altura não pensei, (fiquei até bastante complexada), mas abençoados 3 quilos a mais que não desapareceram em quatro dias: “Oh minha senhora, eu não faço milagres!” Agora já cá não estão, nem esses 3, nem 4, nem 5, foram desaparecendo… (nada como um “poço de ar” na nossa vida para tirar a fome e nos levar ao lugar!).

Mas também… O pânico no ar tem aumentado. Além de que já tracei outro rumo. Acima de tudo um que não me ponha os pés a flutuar. Já bem basta a cabeça. Não é, Maria da Graça?!

E Luigi… Escusas de vir com as tuas teorias TAPrianas que não há nada de “giro”, “engraçado”, “fascinante”, quando o cavalo voador se prepara para descolar ou aterrar! Vale, LM?!

Cavalinhos, só cá em baixo… Ruço, Euclides ou Jingão... No Ribatejo, no Alentejo, em Bensafrim, de preferência no campo, mas também num picadeiro qualquer. Aliás… Nada como a sensação de… Back in the saddle again

Ou essa, ou a do vento na cara no passeio de barco em Família. Discípulos de Baco, Irmãos Dalton, o que seja… São momentos que pedem uma fotografia. Confessando aqui a falta de virtudes do meu pincel, ao menos nela, um barco à vela, é mesmo um barco à vela.

Saturday, July 19, 2008

Hoje o Mar estava bravo…

O Levante acomodou-se na Meia-Praia. Trouxe do mar as suas conchas e algas, uma bandeira encarnada hasteada, banheiros atentos, ondas rebeldes, correntes teimosas, uma água amena, e um vento húmido, um bocadinho frio, mas ideal para pôr as ideias a andar à vela. Trouxe também uma praia mais vazia, o que em Julho é sempre bom. Um passeio a três à beira-mar, a espuma das ondas nos pés e uma boa troca de truques (brincadeiras de praia), cumplicidades e segredos.

Quase parece que não falta mais nada. Nem o sol que se abrigou lá nas traseiras do céu nublado. Nem uma qualquer bebida fresca para matar a sede. Nem um pareo que nos embrulhe e afaste o friozinho. Quase parece que não falta mais nada.

Mas falta.

A pequenina força daquelas mãos miúdas puxam-me para a água. «Mas eu tenho frio», digo. «Não tens… Vamos Gaga!», diz-me o Tomás. Ficaram para trás os tempos em que eu era destemida...

Ficaram lá para trás, no meio das aventuras pelo Molião… Subia de árvore em árvore, descia poços onde o fundo se perdia no escuro, pulava muros, inventava mil e uma tropelias, não tinha medo de me sujar, corria atrás dos animais e até pegava naqueles que hoje me arrepiam (o Tio Luís chamava-me a “Mata-Aranhas” e eu achava que a alcunha era sinónimo de coragem).
Quando chegava à praia fazia parte do mar.

Digo-lhe, ao Tomás, que vou com a condição de não me molhar acima da cintura. «É que eu tenho muito frio», volto a dizer. E volto a ouvir: «Vamos Gaga!» Ficaram para trás os tempos em que eu era destemida...

Convenço o pequenino, mas as ondas não se deixam levar. Mais um bocadinho e já estou no meios das vagas, a minha mão na mãozinha do Tomás em cada investida, desafiando juntos aquele mar que deu o encarnado à bandeira. Por momentos, ganho de novo a sua idade. Ora emirjo, ora salto, os pés para um lado, os braços para o outro, cabelo desalinhado, outro mergulho, outra onda... Discretos ensaios de euforia…

E a espuma das ondas na cara (sempre gostei de me sentar na água em dias de Levante e esperar que as ondas se desfizessem em espuma na minha cara). Que refresco! «Tens frio, Tomás?», pergunto. «Eu não!», diz logo. E eu rio-me com ele (reguila!), recordando-me quando era eu que escondia o tiritar dos dentes.

São duas da tarde e dizem que há umas sardinhas à nossa espera na lota. Peço ao mar que me guarde algures neste Verão outro banho assim. Talvez em Setembro (não há Meia-Praia como a de Setembro…) Foi bom. Saio, abraço a minha toalha, e sinto-me bem com cheiro a sal. Quase parece que não falta mais nada.

Mas falta.

Aceno ao mar bravo já longe e digo “até logo” à praia. Levo de volta na cabeça aquilo que nela se passeava quando lá cheguei. O que falta.

Saturday, July 12, 2008

O Xá Ali Baba ou o Doutor Temaki... My huckleberry friend...

Se alguém tentar perceber as nossas conversas de fora, não vai perceber nada. Aninhamos a nossa cumplicidade dentro de um sentido de humor que oscila entre o cultural, o social e o absurdo total. Rimo-nos que nem perdidos dos disparates um do outro. Ele esquece-se. Eu lembro-o. Eu repito-me. Ele não se recorda. E quando damos por isso, estamos a rir pela quinquagésima vez daquela piada do Allallallallallon em frente da Embaixada dos Estados Unidos, ou a interpretar pela enésima vez o comentário “Ballack’foi golo”.

Alivia-me o peso que cai sobre os meus ombros quando me pergunta como vai o Xá Ali Baba. Só precisamos de dois e-mails para roubar todo o sentido à conversa, dois segundos para que a sanidade entre em colapso desenfreado. Ele diz que eu tenho uma obsessão pela simetria. Eu digo-lhe que ele está sempre com fome, com sono e que é trapalhão como não há igual. Somos conhecidos pela nossa pancada por temakis de salmão (sem queijo!). Troca os nomes de tudo. Chama Cornucópio ao Procópio e diz ao senhor simpático que lá trabalha que eu sou a maluquinha das pipocas (mentira!). Em vez de uma Conchanata clássica: baunilha, morango e nata!, acha por bem juntar numa mesma taça limão, café e manga, além, claro, do molho de morango que dá nome à casa! (ao menos, a sandes de frango e banana só a experimentou uma vez...) E ninguém faz melhor dueto que nós a interpretar Bohemian Rhapsody, versão Queen: «I see a little silhouetto of a man, Scaramouche, scaramouche will you do the fandango… Bismillah! We will not let you go – let him go… Mama mia, mama mia, mama mia let me go…Beelzebub has a devil put aside for me, for me, for me… Galileo, Galileo, Galileo let me go…». Ah, e só mesmo ele para, depois de duas litradas de cerveja e meia dúzia de Würsts com batatas fritas, se aventurar na montanha russa da Frühlingsfest. E eu vou atrás... ("Audácia! Arrojo!" E tão má ideia...)

Passamos uma noite na Golegã (e eu até acho que ele tem medo de cavalos): ele faz do jogo de pólo um relato de futebol, pomos às voltas dentro de nós algodão doce, ginginha em copo de chocolate, farturas, cerveja, castanhas, pacotinho energy da Agel, e jantamos entremeada e entrecosto num “estabelecimento” que levaria qualquer 007 da ASAE ao rubro.

Baseamos a nossa amizade numa competitividade constante: o Milan dele dá cabo do meu Chelsea (normalmente…), a minha técnica tenista é superior à violência com que ele afasta a bolinha amarela, ele humilha-me no xadrez, eu ganho nas damas por um triz, também lhe ganhei uma vez ao berlinde, mas ele tem claramente melhor ouvido do que eu e adivinha sempre primeiro as músicas que a rádio toca, nos matraquilhos estamos even, no ping-pong, enfim, no ping-pong não comento. Ah… E ainda há os passeios de bicicleta. Eu deslizo entre as ruas e as pessoas. Ele desmonta para descer o passeio. Mas, verdade seja dita, em batalhas de bolas de neve, a pontaria afinada é a dele. Nas setas também (eu só tenho garganta!).

Em Estugarda apostávamos tudo em Beck’s Gold (logo depois de termos descoberto que a Weissbier tinha caldo Knorr lá dentro e que isso não nos agradava). Agora competimos só por competir. Só para nos rirmos um do outro.

Estugarda é um sítio que eu não escolheria para viver. Tem sítios bonitos, isso tem. Mas, fora o agradável centro histórico (o que sobreviveu), aquele mercado em jeito de clássico da Walt Disney, a Hauptbanhof (há qualquer coisa nas grandes estações de comboio que me enche os olhos...), a livraria da "Rua do Rei", a Calwer Eck Bräu e a praça em que o Schiller parece esperar o amigo Goethe, não se enquadra na arquitectura pitoresca que alimenta o meu imaginário. Mas foi lá que, de implicância a implicância, competitividade a competitividade, absurdo a absurdo, nos conhecemos e nos tornámos naquilo que somos hoje: Bruno e Graça, eu e eu, ele e ele.

Em Estugarda, a mente brilhante que liderava o FanCamp resolveu um dia mandar o Bruno montar tendas. Esse dia tornou-se uma semana. Único rapaz entre duas ou três estagiárias, o trabalho pesado de carpintaria sobrou para ele (logo ele que tem tanto jeitinho de mãos…). Ao quarto dia, decido que o mundo está de pernas para o ar e vou montar tendas também: «Oh Graça, eu não quero que venhas!», «Bruno, deixa-me! Estou a marcar uma posição!» (os meus momentos de coragem são poucos – pensei, deixa-me aproveitá-los). E assim foi.

Passámos esse dia à chuva – aquela chuva miudinha a cair sobre nós todo-o-santo-dia...! Ao almoço alguém foi buscar uma pizza desengonçada, sensaborona, quase tão precária como a sala escolhida para a refeição. Água: só com gás e sem ser fresca. Discutimos e irritámo-nos um ao outro. Ele ensinou-me a manejar o berbequim (nem tudo foi em vão). Carregámos tábuas maiores do que nós para trás e para diante. Magoámo-nos porque os nossos mitarbeiters alemães não estavam familiarizados com o conceito “devagarinho”. Pregámos algumas tábuas (pobres das criaturas que iam dormir por ali!). E o dia chegou finalmente ao fim. Eu tinha marcado a minha posição (confesso, não com o melhor feitio do mundo…), mas tínhamos passado o dia na companhia um do outro.

Ao voltar para casa, a caminho do U-Bahn, sobre uma das pontes que atravessa o rio Neckar, e envoltos em toda a neura e cansaço de um dia para esquecer, comecei a trautear baixinho: «Eu perdi o Dó na minha viola… na minha viola eu perdi o Dó… Dormir é muito bom, é muito bom, dormir é muito bom, é muito bom…» E cheguei ao refrão. Quando dei por nós, estávamos os dois em ritmo e sintonia aos pulos no meio da rua «É bom camarada, é bom camarada, é bom, é bom, é bom!». E depois rimo-nos que nem dois parvos da dança improvisada que fizemos de uma cantiga infantil que faz agora parte da banda sonora da minha experiência suábica.

Depois continuámos o caminho até casa a suspirar e a queixar-nos da nossa sorte...

Hoje ele diz que não se lembra do episódio. Aparentemente, mexe com a sua obsessão pela masculinidade. Mas eu lembro-me bem. É das lembranças mais... bonitas que tenho daqueles seis meses.

«Com um brilhozinho nos olhos guardei um Amigo, que é coisa que vale milhões…»

Saturday, June 07, 2008

«Quem tem Farelos?» É dia de mercado…

"Life is just like a merry-go-round, with all the fun of a fair"

É dia de mercado, manhã de alvoroço. Crianças pela mão. Do pai, porque as mães têm mais que agarrar, que escolher, que tirar, que refilar, que negociar, que regatear.

Sou só mais uma obreira no meio dos formigueiros de pessoas que se dirigem para aquele átrio mercante.

A proximidade do terreiro é anunciada por pregões que prometem aquilo que nunca darão. Mudanças de rumo, recuos certeiros, passos à frente. Desvios e uma dose saudável de tropeções. A um bom preço (dizem eles!).

Ora bem… Arregaço as mangas e cheguei.


Na barraquinha do trabalho peço baguinhas de focagem. Anda rara por estas paragens e há que aproveitar que hoje é dia de feira. O mercado da vida não tem só farelos, tem tudo. Dão-me baguinhas dois-em-um, diz que também dá energia, e eu acredito. Sou levada muito facilmente…

«Dê-me lá meio quilo homem, está com sorte que é a primeira barraca!»

Levo o foco e a energia, e sigo caminho. A manhã ainda mal começou. Peças de roupa em preço de ocasião. Vamos cá espreitar…

«Ora muito bom dia, menina. Então que lhe falta no guarda-fato?»
«Faltar, faltar, não me falta nada… Mas não encontro as minhas calças de montar…»
«Ai sim?! Eram aquelas verdes, na é verdade?!»
«Boa memória a sua… Calhando, ainda se lembra do meu nome...»
«Oh menina, não se estique que os clientes aqui são aos milhares! Leve mas é daqui as calças de montar e pague depois da ponte no picadeiro… Olhe… E aproveite e arranje mas é também umas botas que a senhora sua Mãe já pregou um chuto nas suas!»

Com esta não me meto. Tenho as calças, vou às botas, amanhã já monto. Antes de fugir, ela ainda me grita:

«Olhe! E pague em aflições! Que eu bem as ouço aí a chocalhar!»

Finjo que não ouço. Adiante. Que movimento! Anda tudo doido “à pergunta” de linhas e contornos. Tudo doido "à pergunta" de um trilho menos atribulado…

«Olhe, é aqui que se trocam obsessões?!»
«Depende menina… O que é que tem p’ra troca?!»
«Simetria e normalidade.»
«Ooh menina, hoje em dia a essas já ninguém as quer!»
«Hmm… E com preconceito, já faz alguma coisa?!»
«Esse ainda se troca por qualquer coisinha, ora mostre cá…»

Bem, fogo à peça. Vai a manhã a meio e eu com tanto por assuntar… Fogo à peça!

«Então e aqui, o que vende?!»
«Vendo cantigas menina, vendo cantigas….»
«Quanto é que leva pelo bandolim?!»
«Este é só para quem sabe tocar… A menina toca?»
«Não deve andar a precisar de vender, não... E o gira-discos está a um bom preço?»
«O didgeridoo?!»
«Não, o gira-discos.»
«Didgeridoo não temos menina.»
«O gira-discos, homem!»
«Aah… Olhe menina, para si – e só porque é para si – são dois segredos!»
«Dois segredos?! Isso é muito caro…! Deixe lá, fica p’ro São João!»

Oooohhh… Aí vem ela… Estou bem arranjada. Não me basta a multa, agora tenho a praga…

«Ai menina, vejo-a tão rodeada de inveja, não é melhor ler-lhe a sina, não?!»
«Cruzes! Afaste-se de mim, mulher!»

Boa altura para ter uma feiticeira como inimiga…
Também… Qualquer coisinha, vou ali desanuviar para a Fonte da Telha. O barril está a um bom preço para esses devaneios.

«Olhe, não me sabe dizer onde posso comprar Tempo, não?!»
«Oh minha filha… Vêm cá todos atrás do mesmo…»
«É um bem de luxo, sabe como é…»
«Pois, mas aqui não há disso…»
«Ai não…? Mas olhe que me disseram que este era o melhor sítio para encontrá-lo…»
«Mentiram-lhe.»
«Bandidos…»

Bem… Só me restam alguns trocados… (é que sempre que se fala em Tempo, voam alguns tostões...)

«Bla bla bla bla bla bla la Toscana meravigliosa?»
«Hmm… La bella Toscana…»

Preço em páginas.
Troco em Chianti.
E assim conversamos.

Chego ao fim do mercado. Acaba numa parede. Que chatice. E agora que o ar estava tão agradável. Dou meia-volta. Levo os bolsos vazios. Já nas mãos levo todo o cheio dos próximos meses.

Friday, May 23, 2008

O Golpe das Telhas da Lançarote de Freitas

Tinham pensado em tudo. Arquitectaram o plano perfeito no meio de uma conversa com o velho Jack Daniel’s que se prolongou até à alvorada e agendaram-no para a madrugada do dia seguinte.

Era um plano sem espinhas. Simples. Perfeito.

A noite começaria na tasquinha da Rua do Jogo da Bola. No meio de tão inebriada companhia construiriam o seu álibi. Quem é que daria conta da sua ausência entre o chocalhar dos brindes – Libiamo! Libiamo! – e um dia seguinte furtivo numa daquelas valentes ressacas? (Noites alegres, manhãs tristes…) Só talvez os jarros despidos de vinho. Mas esses não falam.

Escapulir-se-iam de fininho pela porta da frente da tasca e voltariam para casa: Rua Lançarote de Freitas, número 8. Mais cedo do que o costume mas um pouco mais tarde que o normal. Entrariam sorrateiramente pela porta principal. Eles não tinham NADA a esconder!!!

Mentes astutas, malévolas e expeditas, saltariam para o jardim pela janela. A porta da cozinha estava perra, teimosa e bradava que nem uma mula quando alguém a obrigava a fazer o seu serviço – abrir e fechar. Além disso… Eles não receavam a agilidade de um salto. Afinal de contas, estavam já nos seus quarenta – os cinquenta estavam à porta – e não se queriam esquecer de como voar.

Até aqui, tudo como previsto.

Depois de um salto em tesoura (que até poderia ser considerado artístico se não tivesse sido tão atabalhoado), lá foram avançando, devagarinho, protegendo as costas de um e de outro, cada qual o mais desajeitado. Mas quem poderia censurá-los? Era o seu primeiro golpe, e só se tinham visto na necessidade de levá-lo avante por causa de um tecto que se abria à chuva em dias de vendaval.

Lá atravessaram a varanda, escorregadia pelo frio que repousava no mármore. Estava escuro. Tão escuro. Aquele escuro que sempre o inspirava:

«- Vai alta a Lua! na mansão da morte…!»
«- Shhhhhhhhhhhhht!», calou-o o outro!

Amadores… Que diabo! Agora não era o momento! Nem para baladas! Nem para noivados! Nem para Passos!

Depois da breve - e despropositada! - inspiração romântica, continuaram… Desceram a escadaria do jardim. Em baixo fogueteou um gato preto – mau agoiro! – aquele que ia à frente deixou fugir um suspiro ameninado que o envergonhou tanto quanto regalou o sócio.

Amadores… Que diabo! Não havia tempo para brincadeiras.

Continuaram. Sentiam-se temidos e temíveis. E logo atemorizados quando uma janela bateu. Pararam – eles e o seu coração de larápios principiantes – e puseram-se à escuta. Duas estátuas de rua que sucumbem ao vento. E aí ouviram:

«- JÁ LEVASTE O LIXO PARA BAIXO?!»

Mas como é que é possível?!?! Um plano tão próximo da perfeição quase minado pela própria mulher! Como?!?! Torceram-se os dois em grandes “shhhhhhhhhhtttt”, mas ela não ouviu. Eles é que continuaram a ouvi-la enquanto fechava a janela:

«- Tenho que ser eu a fazer tudo nesta casa! Tudo, tudo, tudo…! Quem tinha razão era o meu Pai… Tudo, tudo, tudo…!»

Os resmungos do costume… Que passaram despercebidos quando os dois tontos se aperceberam que “janela fechada ao vento, noite pela certa ao relento".
Não importa. Estavam determinados em concretizar o plano inspirado por aquele Old No. 7.

Alcançaram o muro que separava os jardins. (Há sempre um muro! Abençoado!). A casa dos quarenta já pesava. Olharam para o muro, olharam um para o outro, e naquela cumplicidade tola e descabida disseram ao mesmo tempo:

«- Escadinha de ladrão?!»

Encavalitou-se o mais espadaúdo nas mãos do outro, ligeiramente mais avantajado, e galgou o bendito do muro. No lado de lá não caiu em pé. Tanto desequilíbrio, meu Deus…! O que tinha ficado do lado de cá riu e gozou, e o que tombou não gostou.

Amadores… Que diabo! Dá para levar isto com alguma seriedade?!

O que tinha galgado o muro correu – mas devagarinho, pezinhos que seriam de lã se não deambulassem ao cheiro do vinho – e dirigiu-se às telhas. Já não eram muitas. A chuva também se desfazia em pranto no telhado do vizinho.

Oito. Era o que havia. Era só o que precisavam.

Agarrou em quatro, correu para o muro, passou-as para o lado de cá para o outro agarrar. Voltou atrás para buscar as quatro que faltavam. Agarrou nelas, dirigiu-se ao muro (estava quase! quase, quase!), passou as telhas, empoleirou-se no muro (tão, tão quase…), e foi quando…:

«- QUEM É O CORNACA QUE INVADE O MEU QUINTAL?!?!?!»

Ui… Bot’abaixo! Rebent’a rolha! As telhas tinham dono e o dono tinha ouvidos de tísico! Nem récita, nem gato, nem mulher, nem janela, nem suspiro, nem pancadinha, nem escadinhas, se esgueiraram a tão vigilante sentinela.

Correm os dois malandros, partem-se as telhas no chão, caem os gatunos, mas logo se levantam, e correm, e escalam as escadas, e escondem-se, e batem com o nariz na janela, e correm para a porta, e arrombam a mula da porta, e UFA… Em casa.

Que sossego… Que segurança…

O golpe… Esse… Foi o mais absurdo da sua geração. Agora, é um pequeno alguidar pouco maior que um penico a amortecer a chuva nas noites mais agrestes que lhes atira à cara uma carreira à margem da lei que de patética teve tanto quanto de curta.

Dizem as más-línguas que a vingança já a embala o vizinho. Não dorme tão-pouco, embrenhado que está em torná-la magnânime. E macaco seja ele, não é tarde nem é cedo, se aquele alguidar um dia não vai beber a água que escorre do seu próprio telhado.

Afinal de contas… Ladrão que rouba ladrão

Thursday, May 15, 2008

O Livro do Doutor Octávio

A Rua Conde Sabugosa continua igual. Desde há muitos anos. Ali meio escondida nas traseiras da Avenida de Roma, um movimento meio confuso de pessoas entre o Pingo Doce e aquele semi-estacionamento no meio do nada – que parece atrapalhar mais do que arranjar lugar, a pouca seriedade do Cotton Club sobre um tradicional Sapateiro, buzinas e manobras estranhas, a clandestinidade apenas de um Coffee & Pot num canto, no outro a montra do café do Centro Roma.

Era aí que estava. Sentada à janela. Sozinha. Na roupa chorava o seu luto.

Há pessoas que nos deixam memórias muito queridas. O Doutor Octávio e a Dona Maria Luísa sempre foram assim. Sempre houve qualquer coisa na voz de um e de outro de muito acolhedor. Desde que por aquelas ruas me passeava pela mão da Avó Graça e o nosso passeio encontrava o deles. O Doutor Octávio muito cavalheiro. A Dona Maria Luísa muito meiga.

« - Olá Dona Maria Luísa. Lembra-se de mim?»
« - Oh, claro que me lembro!»
« - Estava a passar e via-a aqui à janela, então vim dar-lhe um beijinho…»
« - E fizeste tu muito bem!»

Sentei-me um bocadinho. Contou-me como estava. Como já tinha estado pior. Tinha os olhos tristes, mas havia algo de forte no seu estado de espírito. Havia energia na sua voz.

Contou-me que tinha almoçado tarde com uma amiga, que depois se tinha sentado a tratar da correspondência do Ministério da Justiça e que agora estava a ler um bocadinho.

« - Este foi o último livro que o Octávio leu… Disse-me que tinha gostado muito e que eu tinha que lê-lo. Só agora é que consegui pegar nele. E estou a gostar... Queres ver? Ele sublinhou e fez aqui umas anotações…», contou-me, acariciando aquele livro gordo de páginas com as suas saudades.

Eu tinha um preconceito em relação a escrevinhar o que quer que fosse nos livros. Sentia que estava de alguma maneira a faltar ao respeito a esse “objecto imaculado”. Esse preconceito já não o tenho. Perdi-o...

Perdi-o quando a Dona Maria Luísa me mostrou o livro do Doutor Octávio.

Friday, March 07, 2008

Vai ficar tudo bem... Isso eu sei...

À Primavera florida,
Só fica bem o sorrir,
Na Primavera da vida,
Mágoas não deves sentir
.”

Trocam-nos as voltas todas, são maus e é uma chatice.
Tenho uma folha de papel numa mão, na outra aperto com força uma mão-cheia de lápis de cor. Faço um rabisco aqui e um rabisco ali, e não me sai nada. Se é desalento não sei.
Tenho a janela à minha frente, que me traz mais cores do que os meus lápis de cor. Sou uma tonta distraída. Ponho-me a olhar para a rua, procurando o passarinho que me assobia por cada fresta, e não vejo nada porque não estou a olhar. O mundo da minha janela é pouco mais do que vazio, perdeu-se nos devaneios da minha insegurança. Tocam à porta, não é para mim. Cheira a almoço quentinho e caseiro, não vem do meu fogão. Sinto as paredes a vibrar com música, não é da minha aparelhagem (não tenho aparelhagem).

Então volto a uma história qualquer.

Naquele tempo, os caminhos eram de terra e erva, não eram cinzentos. Escorregava-se nas pedrinhas, não no alcatrão. As roupas também tinham poucas cores, mas nem por isso eram menos bonitas. Eram até mesmo muito bonitas. Era uma pequena aldeia, esculturas de fumo fugindo pelas chaminés, candeeiros a óleo contando as casas, música dançando de uma flauta qualquer…

Nesta história havia pessoas pequeninas. Homenzinhos de cachimbo pendurado nos lábios e aconchegado em bigodes farfalhudos. Mulherzinhas de cesto debaixo do braço, cesto de fruta, de bolos, de roupa, e sabe-se lá mais o quê, flores espreitando por detrás da orelha, bochechas rosadas do vento e do frio. Criancinhas correndo e saltando, gritando e gargalhando, pintando, enfim, a pequena aldeia com aquelas tintas fortes que se espremem de um tubo chamado infância.

Nesta aldeia os dias eram todos iguais. As pautas eram certinhas, a vida levava o seu ritmo, e ninguém saía do tom. Não havia cordas para desafinar. Não havia como fugir ao tempo rotineiro. Não havia a incerteza do inesperado. Nem a inespera do incerto. Era – chamemos-lhe – uma linha recta. Não havia curvas, não havia desvios.

Não havia Medo também.

O Medo só apareceu um dia. Nem sequer estava escuro. Nem sequer estava chuva. Nem sequer trovejava. Mas, pé ante pé, o Medo apareceu. Só porque sim. Porque queria que todos soubessem que ele existia. Maldade… Eles estavam tão melhor sem saber do Medo medonho que os fazia medrosos.
O Medo guardava um segredo.

Ora com o Medo, desenho feio e desagradável, aqueles homenzinhos, mulherzinhas e criancinhas pequeninas conheceram a Mão. A mão do outro, do vizinho, do amigo. Aquela. Aquela Mão que está sempre à mão. Aquela… Aquela Mão que estende a mão. E essa Mão era robusta, gorducha, larga, áspera até, mas nem por isso o seu toque deixava de ser simpático e macio.

Então com a Mão eles conheceram a Força. Pesada e bem-disposta. Essa vontade vaidosa, caprichosa, hiperactiva. A Força que fortalece quem se julga menos forte. A Força que sopra com mais força do que os sopros que querem derrubar a mais fortalecida fortaleza.

E não é que a Força os apresentou à Coragem?!

Bendita a hora! Desceu o vento, correram cavalos, esvoaçaram aves, abanaram-se as árvores. A Coragem tinha chegado à aldeia.
A Coragem também tinha um segredo.

O segredo da Coragem era conhecer bem e de ginjeira o segredo do Medo. A Coragem sabia qual era o único medo que amedrontava o Medo. O único medo de que o Medo tinha medo era de não ter coragem para enfrentar a Coragem.

Tolos passeios de palavras…

A verdade é que quando os homenzinhos bigodudos, as mulherzinhas bochechudas e as criancinhas criançudas descobriram que o maior medo do Medo era não ter coragem para enfrentar a Coragem, encheram-se de Coragem, deram um pontapé ao Medo, e voltaram à sua pacata vida na sua pequena aldeia… esculturas de fumo fugindo pelas chaminés, candeeiros a óleo contando as casas, música dançando de uma flauta qualquer…

Soneca… “Vai ficar tudo bem… isso eu sei…”

Wednesday, January 16, 2008

Vou num comboio e vou à chuva...

Queria um comboio... Numa linha bem comprida, em que a estação terminal não se avistasse no mais fundo dos horizontes. Queria um lugarzinho à janela, um cachecol quentinho, uns bolsos largos. O cabelo apanhado, a cara fresca, a ponta do nariz fria. Podia chover lá fora, não me importava. Pelo contrário. A água chorando pela janela ia embalar os meus pensamentos. Que precisam de tempo, de espaço, de vento, de movimento…
Queria silêncio nessa viagem. Queria companhia também. Mas em silêncio. Conversar na cumplicidade do silêncio.
Queria pôr as ideias em ordem. Talvez o galopar do comboio as pusesse em sentido. Não sei.
Às vezes sinto-me cansada. Desta esgrima constante para que o optimismo vingue a toda a hora. Queria esse comboio a esvoaçar pela chuva para descansar. Para pousar a espada. Sair de dentro de mim durante um bocadinho.
Queria adormecer e desligar por uns tempos. Talvez seja só cansaço, talvez uma boa noite de sono sem nós complicados e emaranhados a espicaçá-la seja o equivalente a essa viagem de comboio.
Mas as noites ultimamente têm sapateado. Têm querido a companhia do meu olhar desperto. Ou do meu pensamento.
Vai ficar tudo bem, isso eu sei”… Talvez falte apenas alguém que me cante isto ao ouvido. Alguém que com a sua voz me dê a mão, me beije a testa, me toque levemente nos cabelos. Alguém que me faça sentir confiança para fechar os olhos e saltar ao pé-coxinho ao mesmo tempo.
Será sempre uma criança, que em sonhos dança… Dança…”. E se já estiver na altura de deixar de ser criança? Será que dá para dançar?
Sim.
Mas às vezes não sei.
Quero fazer com que o tempo pare durante essa viagem de comboio para acreditar que sim, que dá para seguir a vida a dançar. Alheia a sopros fortes de outras almas inquietas. Alheia aos caminhos por onde se passeia o Lobo Mau.

Quero um comboio, uma linha bem comprida e um lugar à janela num dia cinzento soltando chuva.
Quero também tocar na chuva. Estender os braços. Não ter medo de ficar molhada.
Quero silêncio. Mas também quero gritar.
Quero dormir. Mas também quero dançar.
Sei o que quero. Não sei o que quero.
Sei o que tenho. Não sei o que tenho.
Sei o que sou. Não sei o que sou.
Será que sou?

Thursday, December 06, 2007

O “Ora muito bom dia” do Sr. Afonso

No vidro do carro as gotas grossas da chuva dispersam-se. É o fim do seu caminho o meu carro. Observo como os bocadinhos de água de uma gota se despedem uns dos outros, tomando direcções opostas na minha janela. Sigo uma delas com o dedo. O trânsito lá fora permite-me brincar com a chuva. Estou parada. No sinal, na fila, não sei.

Uma buzinadela forte acorda-me ao mesmo tempo que a gota que eu seguia se divide em duas, que se dividem em duas, e que são já oito antes de desaparecerem.

A buzinadela volta a manifestar-se. Afinal de contas, foram três os segundos de distracção. Não importa. Na selva que é o trânsito aprende-se a fazer ouvidos moucos. A seguir há outro sinal. Perco-me a observar as caras já tão cansadas mesmo estando o dia na sua alvorada. Caras tristes, zangadas, apáticas, irritadas. Cabelos já desengonçados, expressões já escuras, gestos já feios, atitudes severas. Oh gente!, então?! Isto ainda agora começou!


Levanto o volume da minha música, aquela que não toca em mais nenhum daqueles automóveis mal-encarados, e canto bem alto. Ninguém me ouve. Para eles sou só uma rapariga nova meio doida a cantar alto dentro do seu carro. “Dão carta a toda a gente”, pensam. Paciência!


Foram trinta os minutos em que ziguezagueei pelas ruas entupidas de Lisboa, fugindo ao trânsito pelo trânsito. Estaciono, dou de beber ao parquímetro (e à dor!), e entro no prédio da agência.

“Ora, muito bom dia!”, diz-me o sorriso simpático do Sr. Afonso, um sorriso que sacode com energia a mão envelhecida. “Como está a menina hoje? Menina ou senhora?! Então já teve um longo caminho até aqui? Vive longe, é?! Então bom trabalho!”.
E é assim que todos os dias deixa de chover lá fora.
O Sr. Afonso é o novo porteiro. Trabalha há 50 anos como porteiro, mas àquele prédio da Avenida da Liberdade acabou de chegar. Vive no Campo Pequeno. “Há 55 anos que vivo no mesmo prédio! Fui para lá estreá-lo e ainda lá estou”, contou-me ele. “Aquilo agora está muito bonito, está como era no meu tempo”. O seu sorriso sempre pronto contrasta com o do antigo porteiro.

Esse não era má pessoa, coitado, mas estava de mal com a vida. Tinha os olhos de quem estava sempre não só chateado, mas profundamente zangado e irritado. Era um daqueles veteranos de Guerra Colonial com o amor pela Pátria estampado no braço, benfiquista revoltado – daqueles que mesmo quando o Benfica marca golo grita exasperado “E ia falhando!!!” –, com ténis da Puma, mãos nos bolsos, e sempre a resmungar qualquer coisa entre dentes. E nem era com ninguém em especial, era com a vida! A vida era uma chatice! Mas esse porteiro foi-se embora, para trás nem o nome deixou.

Foi-se embora ele e veio o “Ora muito bom dia” do Sr. Afonso.
Diz bom dia e boa tarde com gosto.
Virou a mesa para a porta para poder viver a rua.
Pôs uma planta à entrada para lhe dar uma cor de boas-vindas.
Varre o passeio à frente da porta e limpa o pó das campainhas.
Gosta de saber o nome de quem ali trabalha.
Distribui sorrisos e recolhe-os de volta.
Diz que está frio e que a chuva faz falta.
Aquece aquela entrada com o seu “Então como está hoje?!”

A portaria tornou-se agora uma passagem agradável entre a selva que é o trânsito na hora de ponta das manhãs e as horas de trabalho. No regresso ao rés-do-chão encontro de novo o Sr. Afonso. “Vai almoçar, vai? Então bom almoço Menina!”.


E é assim que, desde que o Sr. Afonso se mudou para aquela portaria, eu saio daquele prédio sempre a sorrir. Na Confeitaria vizinha pensam os clientes do costume que à montra engolem a sopa e o café em excesso de velocidade: “Olha, lá vai a louca que sai daquela porta sempre a rir!”.


Eu não me importo. Tivessem eles o “Ora muito bom dia” do Sr. Afonso a aconchegar o seu expediente e talvez assim quisessem, quiçá, ser loucos também.

Sunday, December 02, 2007

Contrato de Bignorâncias

Precisamos de alguém a quem fazer perguntas estúpidas. É verdade! Precisamos.
Alguém que não nos faça sentir o ser mais ignorante que Deus pôs no Mundo quando temos que desfazer, cortar ou esquecer aquele incomodativo nózinho que nos mói a cabeça, martela baixinho, puxa os cabelos e, pura e simplesmente, nos DÁ CABO DO SISTEMA NERVOSO...! Como aquela torneira antiga, pintada de calcário, seca, mas que teima em ser torneira e como torneira manter-se no activo e que por isso passa horas inteiras de dias e noites a fio, gritando a sua condição de torneira: "Ploc...! Ploc...! Ploc...! PLOC!!!!!!"
Então, como dizia, precisamos sempre de alguém a quem fazer as perguntas estúpidas e básicas que - desenganem-se! - todos temos. Convém é ser só uma pessoa, duas, não mais do que três, porque espalhar por aí o leque de perguntas "dois-mais-dois-igual-a-quanto-mesmo-pontodeinterrogação" é capaz de generalizar pelo povo, pôr na boca do mundo, uma imagem que não queremos de todo passar.
Às vezes nem é uma pergunta "cheia" ou "completa", não é totalmente uma pergunta. Às vezes é só uma duvidazinha ligeira que nos sopra ao ouvido e nos separa do clic do "Ah, já sei!". Mas sabemos que esse clic é básico, óbvio, de senso comum, que toda a gente sabe. Menos nós. Ou se calhar sabemos mas não temos bem, bem a certeza. E é uma chatice não ter bem-bem a certeza.
E é por isso mesmo que precisamos a nosso lado daquela pessoa de confiança com quem estamos à vontade para corar, gaguejar, meter o pézinho na poça, tropeçar, passar por tontinhos de vez em quando, e por aí. Quanto mais não seja, porque o contrato é bilateral, a faca tem dois gumes, a corda duas pontas, e essa pessoa também tem com toda a certeza o seu molhinho de perguntas absurdas.
"Contrato de Bignorâncias", chamemos-lhe assim. É um fifty-fifty de fiascos de raciocínio ocasionais, uma aconchegante cumplicidade na nossa percepção de seres humanos a anos-luz de calcar todas as léguas do conhecimento. Ou seja, animais que não sabem tudo.
Posto isto, um bem-haja a essa pessoa que cada um de nós tem sempre à mãozinha e que nos dá um bocadinho de lume quando somos assaltados pelas absurdas interrogações do Óbvio. Que toda a mão-cheia de perguntas estúpidas fiquem sempre só entre nós!
Já agora e antes de me ir embora, mas porque é que neste mundo, a Água e o Azeite não há meio de se misturarem...?!

Sunday, November 04, 2007

Carioca de Limão

O Outono chegou, quem diria. As paredes de casa sussurram o friozinho que na azáfama da calçada e no afogueado da respiração passa despercebido. O cobertor pede mais uso, ou o corpo pede mais cobertor, não sei...
Os dias são de muita luz, tanta e tão bonita que as folhas das árvores (as mesmas que suplicam aos ramos que as abracem com força para que não as deixem cair) ganham uma cor acolhedora quando tocadas pelo sol que a gosto se demora nos seus tons de Outono.
Mas há já um friozinho, dizia eu… Esse friozinho chega-nos em casa e acompanha-nos até à rua quando saímos. Depois levamo-lo na cabeça até encontrarmos o conforto daquele café que sempre nos espera. Uma mesa e uma cadeira a um canto e à janela, para que esta nos dê a rua, passerelle irrequieta das gentes que agitadas desfilam.
Teimo na audaz vontade de fugir ao pedido do costume. Não quero torrada, não tenho fome. Não quero ginger-ale, tenho frio. Não quero galão, não me apetece.
“Trazia-me um carioca de limão? Em chávena grande…”
E o carioca de limão veio bem mandado. A fumegar ligeiro, cascas de limão a bailar no fundo da chávena como xaile rodando num pano amarelo brincalhão. Queimo a ponta da língua, sempre queimei. “Burro velho não aprende línguas”, penso… Sopro de mansinho enquanto aqueço as mãos segurando a chávena.
Parece agora no ponto e provo. Provo e demoro-me no primeiro beijinho que dou ao amarelo fumegante. Fecho os olhos e recuo, rebobino, recordo... Aquele sabor tem tantas histórias, tantas lembranças. Lembranças que me acariciam. A voz… A sua voz. Lembranças daqueles fins de tarde na Suprema ou na Mexicana (onde na telefonia tocava o animado discutir dos periquitos), quando Lisboa era ainda um Mundo aos meus olhos, quando a Avenida de Roma era a minha Lisboa, ali, tão perto da sua casa.
Estendia-se um bocadinho até à Feira Popular (a Lagarta, o Carrossel da Selva, a Casa e o Comboio do Terror!), fugia por vezes às Amoreiras (pé ante pé nos sapatinhos de quarto da Bambi), escorregava pela Avenida da Igreja que guardava (e ainda guarda!) a Conchanata, escapulia-se outras tantas vezes ao cinema, não sei bem quais e agora às lágrimas só me vem o King. Era ali tão perto. Era mesmo ali. E ali era tudo, era Lisboa, a minha Lisboa. Tão perto da sua casa...
E que bom era hoje poder tê-la aos Domingos como companhia, a sua voz embalando as histórias de final de tarde, o seu sorriso espelhado no meu carioca de limão.
Que bom seria tê-la sempre nesta minha Lisboa de hoje. Sempre perto da minha casa.

Thursday, September 06, 2007

“Tive a’tilal Lalanjas po teu Quintal!”

Gaiato pequenito, louro, dentinhos marotos. Trocava o tamanho pela imaginação. Nos momentos de descanso, breves e inesperados, cozinhava ideias que ferviam em combustão rebelde. Os olhos que brilhavam e as mãos que se esfregavam revelavam mais uma diabrura cuspida da panela de pressão.
Aquele jardim que o tempo se encarregara de envelhecer, era palco agreste e costumeiro das suas travessuras. As árvores cansadas e corcundas vinham a pingar fruta desde o início da estação. Era um tapete de terra e ervas amuadas, que com laranjas aqui e ali, limões cá e acolá, parecia ter reunido os velhotes do café do beco mais fundo, numa daquelas partidas de malha que transformam a tarde em noite.
O quintal vizinho parecia atraente. Não pelo seu exotismo, beleza tropical ou vestes idílicas, porque, não estando jogado ao abandono, parecia tão confuso e só como este que se desfiava por Outonos e Invernos e contava apenas com a bondade da chuva e as festinhas do vento para compensar o esquecimento humano.
Mais atraente ainda era a ideia de incomodar a vizinha. Já tinha engendrado mil e uma geringonças temperadamente maliciosas para irritar a senhora, só que tinha que contentar-se com as delícias do abstracto porque nunca tivera a oportunidade de puxar a manivela que punha essas geringonças a funcionar.
Mas… Era uma maçada aquele muro… Eram precisos dois dele, para se assomar e espreitar … Oh! Que disparate! Não era a primeira vez que se via obrigado a desencantar no meio das tralhas encavalitadas entre o mofo da arrecadação, um caixote de madeira húmida e bolorenta que lhe servisse de escadote e aumentasse o campo de visão. Cá está ele! Entre um arrasto e outro, uma batida leve, um pontapé mais forte, testa-se a carapaça do novo aliado. Está pronto para fazer parte da audaz investida!
Uma lalanja neste bolso, outra lalanja no outro, e com a t-shirt larga, que lhe ficara do irmão, fez como que uma alcofa onde juntou todos os petrechos. Ena! Tantas lalanjas!! E agora... Toma lá! Uma, outra, outra, e ainda esta! Mais aquela, e a outra, e esta, e ainda outra!!!
Ah Ah! Que maravilha! Era terrível o miúdo! E deliciosa a sua gargalhada enquanto via as lalanjas tornarem-se sumo de lalanja! O toque áspero e frio dos pesados cubos de calçada era agora peganhento e escorregadio, rendidos que estavam à polpa da lalanja! Pareciam vir de todos os lados!! Mas era só a criatura de dentes de leite que impulsionava com toda a sua (pouca) força o arsenal de Vitamina C!
Mas toca o alerta! (Não, tocar não toca, porque as diabruras é melhor que se as faça sozinha, por ser a melhor maneira de escapar impune aos juízos da Senhora Educação.) Então, não toca o alerta mas alerta que vem aí a Velha!
A criança quer fugir mas os pés são ainda trapalhões, o medo faz tremer o corpo, os olhos esbugalhados do susto não deixam ver nada. Cede a madeira perante a humidade e o bolor, e tropeça a criança no seu próprio aliado!
Quando abre os olhos, estendido no chão, tenta resistir ao Sol, mas eis que uma sombra de velha, de bruxa, de malvada, agarra no sol, esconde-o no bolso, leva mãos à cintura, e de voz estremecedora, confronta-o em expressão de ameaça: «O que é que estás a fazer?!». Já foi apanhado, há pouca saída… Mais vale desembainhar espadas e coragem, e continuar a brincadeira: «Tive a atilal lalanjas po teu quintal!». Não percebe a vizinha a sinceridade infantil, recorda-se que há meses que não limpa os ouvidos, e pede à criança que repita. Esta fá-lo pacientemente: «Tive a atilal lalanjas po teu quintal!». «Ora bolas», pensa ela, «Na querem lá ver que ‘tou precisando d’um aparêlho?!», e mete o dedo mindinho (que nela é Mindão!) quase no tímpano e roda e desroda como quem desenrosca o parafuso mais enroscado. Entre uma careta e lábios subidos, insiste a criança espaçadamente:
«TIVE-A-ATILAL-LALANJAS-PALA-O-TEU-QUINTAL!!!»
«Ai, bandido!!!», e agarra-o pela orelha ao petiz, leva-o a casa, bate brusca e bruta à porta, e chama pelo Pai do audacioso aventureiro. Narra o episódio com todo o rancor e repreende a ineficácia da sua educação. A raiva é tanta que, ao falar, não fala, brada!, e toda se cospe! Salpica fugaz e voraz a barba de dia e meio do Pai da criança e obriga-o a zangar-se com o garoto. O homem, que carregava aos ombros um dia de trabalho, diz à criança «Não voltes a fazer isto». Vira as costas e volta para dentro. Leva no rosto um largo sorriso. Levanta os olhos ao Céu e reza com força, pedindo ao Senhor que na próxima vida abençoe aquele jardim com as maiores das melancias.

Tuesday, July 03, 2007

Conversas de Café

"Boa tarde menina! Para comer já sei que vai ser uma torrada, agora para beber é que já não sei…"
Gosto de pequenas rotinas. Gosto da familiaridade de chegar ao ‘meu’ café, e demorar-me no lanche do costume sem ter que pedi-lo. Gosto até das piadas sem grande piada do empregado do costume.
Sorrio. Realmente nunca sei bem que pedir, se um galão, se um ginger ale.. Depende da hora do dia, ou dos apetites, ou da força de vontade, sei lá…
“Hmm… Pode ser um ginger ale. Sem limão.”
E pouco tempo passa até o meu lanche do costume chegar acompanhado por uma das piadas do costume:
“Ora aqui está um ginger ale CHEIO de limão!”
Não faz mal. Acho graça como os hábitos se vão trocando, e se vão conhecendo.
Tento espreitar o livro que levo comigo, mas nunca tive muito jeito para fazer duas coisas ao mesmo tempo. Deixo o livro aberto, afasto-o ligeiramente e saboreio a torrada e o ginger ale.
À minha frente… Os clientes do costume. A brigada dos reformados. Paleio não lhes falta!
“Oh Lídio, aquele prédio! Aquele que ficava ali no Vale de Santo António, era assim que se chamava, Vale de Santo António… Um prédio muita grande! Foi o primeiro prédio que eles fizeram ali.”
Gosto de ouvir a conversa deles. Há ali, naquelas conversas de fim de tarde, sem princípio nem fim, algo que me embala, que me prende a atenção. Hoje eram cinco ali de roda de uma mesa. Há sempre aquele que mais fala, que repete os “pás” como quem inspira e respira. Esse sabe tudo. Os outros vão ouvindo, concordando, discordando, mandando o seu bitaique, soltando a sua lembrança.
Não sei as voltas que a conversa deu, mas sei que passou pelo António Costa (aos restantes candidatos à Câmara alfacinha ignorou). Nessa altura mais politizada devolvi o meu olhar à página que me esperava há já alguns minutos, quando ouço como que solta Meia-Praia.
“É a Meia-Praia sim”, diz um.
“Não aquela lá mais pra cima, a Dona Ana”, aponta o outro.
“Ali onde fica a ponta da Piedade, e depois há também o Porto de Mós. Mas é a Meia Praia”, ainda há quem diga.
E ali percorreram em menos de nada o roteiro balnear de Lagos ignorando que, atrás de si, uma lacobrigense ouvia atenta o percurso que desenhavam. Demoraram-se pouco porém, e passaram ao resto do Algarve: Portimão, Albufeira, Armação, Monchique, a Fóia (“Aos anos que não vou à Fóia, aos anos…”), Lagoa, Sagres, Tavira. Ali, todas meio soltas. Bocadinhos de férias de outros tempos.
“E ali, quando vamos por Lagoa, e depois vamos para o Carvoeiro. Eu ia muito para o Carvoeiro.”
Diz o outro:
“O Carvoeiro… Eu tomei banho nu no Carvoeiro.”
E ainda outro:
“Mas isso fica pra trás da Lagoa.”
Volta o anterior:
“Tomei banho nu no Carvoeiro. Em 1953…”
Ainda um deles:
“Mas o Algarve já está muita feio. Já não é o que era.”
Quando o pivot da conversa intervém:
“Sabem qual é a praia algarvia que está num roteiro com as 100 praias mais bonitas do mundo?! Eu vi isso num roteiro lá com os suecos! É a praia do Marinheiro, lá pró pé do Carvoeiro. E eu já lá fui!"
"Então e era bonita?"
, pergunta alguém.
"Ah, era uma praia normal, estava arranjadinha, tinha lá as rochas, tipicamente algarvia, e tinha as ravinas a cair."
A conversa não podia ter acabado da melhor maneira:
"Para mim as cidades mais bonitas do Algarve continuam a ser Tavira e Lagos", disse o senhor que em 1953 tomou banho nu no Carvoeiro.
E entretanto a conversa dispersou-se…
"Aquele cão, que cão é?"
"É um caniche", diz o sabichão, "é o cão dos franceses."
E pedi a conta. Que veio com mais uma das piadas do costume. O empregado simpático voltou a duplicar a soma do meu lanche. Mas não há razão para alarido. Eu sei que a conta é simplesmente a do costume.

Sunday, May 20, 2007

Valha-me Santa Bárbara que troveja!

Pico cebolas, pingo azeite
Tenho feito um refogado
Junto arroz a meu deleite
E preparo um cozinhado.

Salpico o lombo de especiarias
Espremo bem meio limão
Adivinham-se iguarias
Enquanto acendo o fogão.

Meio litro de cerveja
E o vinho a muito frio
No saleiro, o que sobeja?
“Oh Diabo! Está vazio!”

Não há erva nem tempero
Que me valha o lombo assado
Sem do sal uma pitada
Lá se foi o cozinhado…

Porque é que achamos que há ingredientes na nossa despensa que nunca vêem o fundo do pacote? O sal, o arroz, o açúcar… Acreditamos que naquele armário do cantinho da cozinha que nos serve de armazém, o sal, o arroz e o açúcar têm uma fonte que não se esgota. Esvaziam-se os pacotes e ninguém dá por isso.
Até ao dia em que serão cruciais para aquele cozinhado que magicámos na nossa cabeça e de que nos conseguimos convencer que vai surpreender: a nós, alegres artesãos do feito em causa, e aos nossos convidados, a quem ludibriámos e persuadimos a ser os privilegiados cobaias de uma invenção culinária sem par.
Então, nesse dia, julgámos ter pensado em tudo: no vinho que já pusemos no congelador, no acompanhamento requintado que elaborámos ao sabor da imaginação, na sobremesa que pedimos à nossa prendada convidada para trazer, na toalha de mesa lavada e passada e com uma base para vinho (a condizer, pois, com o serviço!) sobre aquela nódoa de gordura que teima em não sair, nos talheres de sobremesa, nos guardanapos de pano, nos copos de vinho e de água, nos aperitivos e digestivos, e até nos sumos para aqueles que não estão habituados a acabar o repasto com um grãozinho na asa.
Arregaçamos as mangas para temperarmos a nossa especialidade com o nosso tacto mágico, e quando agitamos o pote de sal – nada! O arroz só há para meia chávena, o que não enche sequer um prato! O açúcar… Bem, com esse não temos que nos preocupar, porque, lembrem-se, pedimos à nossa amiga prendada para se encarregar das sobremesas (a não ser que um convidado inconveniente se lembre de pedir açúcar para o café! Ah, mas isso já era falta de sorte! É melhor não servirmos café…)

O problema não é de simples solução. Porque temos o condão de só nos lembrarmos de Santa Bárbara quando troveja, também só começámos a preparar o tão esperado jantar à última da hora. Não há Mini-Preço, Pingo Doce, Continente que nos acuda… E, convenhamos, quem é que já viu sal, arroz ou açúcar à venda numa estação de serviço?!
Podíamos sempre procurar o auxílio do vizinho, mas no meu lance de escadas o conceito de “aldeia global” não sobe nenhum degrau. Senão vejamos… Desde o meu 3º direito não sei o nome nem do esquerdo, nem tão-pouco me apercebo da constituição do seu agregado familiar. Do 2º direito, só sei que o senhor gosta muito de conversar e não é do mesmo clube que eu (haja pés para sapatear quando o Benfica põe a bola na baliza!). Perco-me a partir daí e só volto a reconhecer a senhora do rés-do-chão esquerdo que fuma que nem chaminé de fábrica no auge da Revolução Industrial e que tem um cão que ora me ladra simpático, ora salta para cima de mim para autografar as minhas calças.

Posto isto… Troveja-me a falta de sal no meu jantar convívio e nem Santa Bárbara me vale com ricas salinas a condimentar o apartamento de um simpático vizinho.

Wednesday, April 25, 2007

Eu tinha grandes planos para a Quinta…

Primeiro ia correr mundo e fazer fortuna. Não me levem a mal, não sou ambiciosa, mas desde miúda que tenho bem a noção de que aquele baú de memórias que desde o Monte Molião observa Lagos ao longe vale uns valentes tostões.
Então sim. Ia correr o mundo. Recolher experiências aqui e ali, atá-las com uma guita e trazê-las às costas no regresso juntamente com a tal fortuna.
Comprava a Quinta e o negócio fechava-se em família. A partir daí ia desenhando os seus muros e paredes, as suas portas e janelas, o seu telhado e a chaminé, a sua torta calçada, à semelhança de cada lembrança.
Dava cor às paredes rasgadas da casa, cobria os arranhões de tantos anos de branco e pintava os lábios das janelas a azul. Envernizava a madeira das portas, mas deixava o ranger confidente, esse ranger soa a antigo, soa-me bem. Ao telhado sobre o alpendre devolvia-lhe a vida, que ele há anos que tenta beijar o chão. E nas grades onde o Sr. Viegas desistiu de tudo, devolvia-lhes o verde vivo e robusto e o brilho que ecoaria até ao outro lado de Lagos.
Os muros que separam a Quinta da estrada, que circundam o pequeno jardim com árvores de frutas, que separam os pequenos campos ao longo da propriedade, e que costumavam cercar os animais para que não fugissem por aí doidos pelas ruas de Lagos, voltaria a erguê-los. Acho que há anos que eles vêm adivinhando o seu triste fim, então têm vindo também gradualmente a desistir, a desmoronar… Mas não! Nos planos que eu tinha para a quinta, estes muros voltariam a ser duros, rijos, ruins de deitar a baixo! Nem uma pedrinha de areia eu deixaria que se desfiasse. Afinal de contas, as figueiras continuam a dar figos, as romãzeiras brotam as suas romãs, a palha continua a ser enfardada, os animais continuam a pastar, e há que velar por todos eles porque há por aí muito bandido a arriscar a liberdade por um figo do Monte Molião.
Entretanto, poria fim à soberania das ervas daninhas. Estão agora tão grandes que parecem ambicionar destronar as oliveiras das suas alturas. Mas isso, com uma enxada damos-lhe a volta. Paz às suas almas, mas é que na tela que eu pintei da quinta elas não têm lugar.
Em cada canto deste lugar encantado voltaria a haver vida. As galinhas voltariam a digladiar-se pelas folhas de espinafres que deitaríamos para dentro do galinheiro para espicaçá-las, um ou outro galo anunciariam de novo a madrugada sem se saber bem de onde, os coelhos sem conta regressariam àquele armazém forrado a palha, as vacas e os bezerrinhos aconchegar-se-iam outra vez no estábulo que sempre lhes pertenceu, o Sr. Manel voltaria a dar uso às latrinas de leite das suas vaquinhas, o Sr. Joaquim olearia os motores e ferros das máquinas agrícolas e voltaria a passeá-las pelos campos e a cultivar o que quer que fosse, e o João Borralho continuaria a meter o bedelho em todos os assuntos da quinta e a carregar sacos de tudo e mais alguma coisa para trás e para diante. Na casa do Sr. Joaquim voltaria também a haver aquele pão fresco que ele partia com a mão e que partilhava comigo todas as tardes, esse pão que não encontro igual. Enfim, o Molião voltaria a ter sentido.
Imortalizava a lenda de que na casa da bruxa havia uma bruxa que tinha um gato preto e um caldeirão sempre a ferver, e de que no fundo do poço havia um gigante que saltava cá para fora se nos assomássemos a espreitar a água lá no fundo.
Deixaria no jardim a mesma mangueira amarelada do tempo que tantas vezes nos tirou a areia dos pés e do corpo no regresso da praia, e todos os dias regaria as flores e as árvores e sentiria com gosto o cheiro a terra molhada.
Todos os dias também espreitaria pela janela e encontraria espelhado no vidro o meu sorriso ao ver o Frederico a correr pela ladeira abaixo a gritar que tinha visto uma cobra, o Felipe a procurar comigo um bom esconderijo, a Teresinha a pentear as bonecas no banquinho do quintal, a Mãe a sacudir energicamente sacos, pés e toalhas, e a dar-nos uma mangueirada de água fria sem piedade, para que nem um único bago de areia tentasse recriar a praia dentro de casa, o Pai a soprar esbaforido o seu apito “von Trapp” para reunir as tropas na hora de jantar. E à Méme veria com certeza empoleirada no muro do jardim a roubar nêsperas sempre com o seu cuidado de não interromper a digestão. A música seria sempre a mesma: o riso da Avó Graça e a sua voz ternurenta a dizer “Olha a minha neta!”, ou a contar as aventuras do Touro Azul…
Mas agora a quinta foi vendida. Provavelmente dará lugar a um daqueles condomínios gémeos que têm no preço aquilo que não têm em histórias. Talvez daqui por uns milhares de anos, quando o Monte Molião voltar a ser monte, algum arqueólogo curioso desenterre acidentalmente uma fotografia, um brinquedo partido, um berlinde perdido, uma bola furada… Enfim… Um rasto daqueles que foram dias tão Felizes.

Sunday, April 15, 2007

Chaminés Algarvias

Procurei algures numa feira baratucha uma bicicleta como eu. Que se movesse a pedaladas antigas. Encontrei-a. E hoje levei-a a passear por Lagos. Não pela cidade, mas pelas novas urbanizações "arborezadas" nos caminhos que vão dar às praias. Impressionante como crescem por todo o lado casas que não sendo propriamente feias parecem não se entender umas com as outras. Como se uma 'mesa-redonda' reunindo pessoas que simplesmente não falam a mesma língua. Uma velha Torre de Babel. A maior parte não são de facto feias. Tentam colorir-se suavemente, como que deixando o vento pincelar tons de amarelo, rosa, laranja e até branco. Mas variam nas formas, e as formas por vezes chocam umas com as outras... Onde umas crescem e criam janelas em cilindros de tijolo, outras arranham-se em rectângulos que quase tocam as vizinhas em tom de provocação.

Mas estas casas estranhas têm algo em comum. Dão as mãos umas às outras a partir de um telhado sempre mais ou menos tradicional. Todas erguem para o céu a mesma chaminé algarvia. São todas iguais. Aquela mesma chaminézinha que percorre vilas, aldeias e cidades, e até casinhas isoladas nos montes e serras do barlavento ao sotavento, e que é facilmente reconhecível nos livros de geografia da escola. Uma mancha preta que denuncia cozinhados apetitosos à moda da região. Uma caractetística pitoresca no meio de arquitecturas tão adversas umas às outras. Essa chaminé algarvia que nos convence de que no meio dessas casas tão diferentes umas das outras, tão diferentes de nós, ainda há um sopro ligeiro do antigamente. Alegra-me a ideia de que sim, ainda estou no Algarve mais rústico e não no algarve turístico que atrai milhões em época de veraneio mas que afasta infinitamente os outros que lá cresceram, entre corridas na praia, pescarias em alto-mar, trapézios em amendoeiras em flor e a tez bronzeada do sol.

O passeio continua. O caminho atribulado de terra quase batida despede-se das urbanizações novas da cidade e dirige o pedalar trapalhão da bibicleta centenária até ao mar. É o vento e a brisa que a puxam agora, porque o pneu já vazio e os músculos já cansados pouco fazem pelo movimento. De novo a estrada, o asfalto. O trânsito - nenhum. Ao fundo acena-me o farol da Ponta da Piedade. Finalmente lá, entre um cafézinho e uma barraquinha para turistas semi-vazios, o mar e o abismo cada vez mais perto. Dou repouso à minha relíquia e aproximo-me quase tanto quanto posso. À minha frente só o Mar. A sua cor. O seu fresquinho. As rochas que se impõem do meio dele. Uma gaivota ou outra que providenciam a banda sonora. Tenho vontade de abrir os braços, fechar os olhos e respirar bem a fundo aquilo que o Atlântico me devolve. E aí, penso eu, nem as chaminés algarvias fazem falta para me lembrar de que sim, eu pertenço aqui!

Monday, February 19, 2007

Em contra-dança...

Onde é que está o inútil irresponsável que segurava o aparelho que comandava a minha vida?!
Agora sou eu que tenho que tomar as minhas decisões! Querem ver que vou ter que crescer…
E tudo porque o preguiçoso desmiolado que tinha na mão o comando que me dirigia achou por perdido o seu tempo e decidiu descuidá-lo e deixar-me ao Deus-dará!
Resta-me agora, pé ante pé, apalpar bem o terreno, olhar para um lado e para o outro, não vá o diabo tecê-las e em vez de um banquete vá eu encontrar uma sopa azeda.
Isto é de gente destemida… Encontra-se uma fresta de uma janelita aberta, vai-se entrando por ela adentro, puxa-se aqui e puxa-se ali, e já somos a Senhora Coragem que conseguiu domar a janela mais perra. Depois, paramos para pensar! “Oh diabo, querem ver que agora que escancarei a janela, tranquei todas as portas?!”
Mas não… É mesmo à portuguesa esta coisa de ser tão fatalista… Ora porque é que agora se fechariam todas as portas?! A dança ainda agora começou!
Vou mas é sacudir os pés, bater as mãos, soltar o cabelo, que o número agora é o meu!

Sunday, February 04, 2007

Ensaio sobre a Simplicidade

O seu nome era João da Silva, mas gostava que o tratassem por João. Na correspondência que trocava assinava com um J. Na rua sorria com facilidade, ao senhor do Quiosque, o Sr. José, às irmãs da mercearia, a Maria e a Luísa, ao rapaz das castanhas, o Joaquim. Sorria quando lhe sorriam, e quando não o faziam era ele quem sorria, iluminando as expressões mais severas. Deixava as senhoras passar à frente, abria-lhes a porta galantemente e acenava com a cabeça em jeito de respeitoso cavalheiro.
Gostava de tratar tudo e todos por aquilo que eram. O varredor de rua que costumava apurar a calçada em frente ao seu prédio era para ele um varredor. Para o homem que vivia na porta em frente, um empresário bem sucedido, exageradamente formal e até petulante, era um “técnico auxiliar de controlo e limpeza urbanístico”. Bonito nome. Mas só o João da Silva é que sabia que esse técnico auxiliar de controlo e limpeza urbanístico se chamava Artur, era casado e tinha duas filhas, uma delas já com um pé na faculdade.
Mantinha os pés bem na terra à mesma altura que os demais. Não olhava para ninguém desde cima, nem desde baixo, mas de frente. O modo como se vestia entreabria um certo desinteresse, e o cabelo desalinhado contrastava com o gel usado pelo vizinho da frente. Falava com este e aquele e todos o percebiam. Não usava cá palavras caras, gostava de ser entendido. Não pretendia deixar ninguém boquiaberto com a riqueza e exuberância do seu vocabulário.
E o João lia, cultivava aquilo que de mais português há na nossa cultura. Declamava os Lusíadas e os Autos de Gil Vicente pelos corredores de sua casa, lia Eça com paixão, fechava os olhos para ouvir a voz de Amália e bebia cada verso, respirava cada Fado. Mas não gostava de palavras estranhas. Nunca se tinha candidatado à função pública porque as candidaturas mexiam com o seu sistema nervoso. Detestava ser um requerente numericamente classificado a pedir deferimento para ingresso para provimento numa determinada categoria concursada! Não fazia ideia de quem escrevia tal coisa, mas gabava-lhes a imaginação.
Apaixonava-se poucas vezes. Sabia quem procurava. E encontrou-a mais do que uma vez. À terceira agarrou-a e não a deixou fugir. Lia-lhe baixinho histórias que em tempos ouvira da sua avó. Não dizia “Amo-te desalmadamente minha flor esbelta e brilhante, és tudo para mim”. Dizia-lhe simplesmente “Gosto de ti”. Não lhe oferecia um ramo de flores gigante com rosas, e orquídeas, e dálias, e toda e mais alguma espécie botânica que se vendem ao preço do ouro nas floristas de Lisboa. Oferecia-lhe uma flor que roubava traquinamente no jardim ao lado de casa. Não pintava o seu amor a vermelho. Mas de várias cores consoante o dia. No meio das pessoas não demonstrava descaradamente aquilo que por ela sentia, preferia segurar-lhe discretamente a mão, e nela deixar um beijinho tímido quando ela menos o esperava.
Era simples nos gostos e na vida. E era a sua simplicidade a sua maior grandeza.

Tuesday, January 16, 2007

Cordões Desatados...

Não sou jornalista. Estou a tentar ser... Não sou mulher. Estou a tentar ser... Enquanto tento sou um bocadinho de todas as coisas sem ser nada exactamente.

Sinto-me jornalista quando vejo um trabalho ganhar forma e esse trabalho não me parece um trabalho de uma criança assustada. Para logo deixar de senti-lo quando atrás de mim nada existe, uma parede vazia que me atira à cara que sou ainda uma criança fácil de assustar. Uma criança que se aterroriza com o tempo que não tem e que enquanto vai pensando que não o tem vai deitando fora os seus minutos preciosos. Uma criança que pouco sabe do universo da vida - do passado, do presente e do futuro. Amedrontada com fantasmas de outros tempos que a qualquer momento podem aparecer em dias mais tarde e dar cabo do frágil presente.

Sinto-me uma mulher quando alguém me faz sentir bonita porque olha e sorri e desfaz anos e anos de complexos construídos em cima de complexos. Quando aqueles gestos, aquele olhar, aquela paixão com que se soltam as palavras me fazem pensar "e se...?". Quando distingo o bem e o mal sem grandes ilustrações. Quando me oriento sem "ziguezaguiar" pelos confusos labirintos que crescem como ervas ao longo do caminho. Para logo deixar de senti-lo quando uma voz e uns olhos simpáticos me tratam por "menina" e me lembram que era bom ser apenas uma menina - com cabelo louro e rebelde, ideias a borbulhar na cabeça, magicando aventuras sem fim, camisa desbarrigada e cordões desatados.

Então gosto de me sentir uma "menina". Prefiro "menina" a "senhora". Prefiro "menina" a "você". Prefiro "menina" a "tu". Refugio-me nesse "eu menina" e escondo-me do "eu mulher".

E quando dou por mim sou outra vez uma miúda medrosa a querer ser jornalista e a querer ser mulher e que dá por si não sendo nenhuma das duas.

Tuesday, January 09, 2007

A menina dança?

Saí das aulas já tarde. Era noite e esperavam-me no Cup & Cinno de Entrecampos. Deixei o carro na faculdade e desci as Forças Armadas até ao café. Descia a rua tagarelando com duas colegas como os trabalhos gostam de se acumular e como o tempo nunca é suficiente para os fazermos como os idealizamos.
De repente, a minha atenção fugiu bruscamente da conversa. Lá em baixo, um holofote acendeu-se iluminando o fundo da rua e deparei-me com algo que nunca tinha visto senão num filme - uma daquelas cenas que nos fazem sorrir quando visitam esporadicamente a nossa memória.
Uma rapariga descia. Um rapaz subia. Ela começou a dançar. Ele respondeu do mesmo modo - dançou. Os dois pareciam escutar a mesma música. Uma música que mais ninguém ouvia. Os movimentos ritmados. A alegria daquele ritmo.
Pensei: "Serão loucos?"
Se eles são loucos deixem-me ser louca também! Deus! Como eu quis juntar-me a eles, articular movimentos à toa, sem notas, levantar os braços e agitá-los energicamente no ar, rodar a cintura, dar vida ao corpo, sapatear a calçada, e simplesmente dançar. Dançar só para mim. Sem pensar que ninguém está habituado a ver as pessoas a dançar por aí sem questionar a sua sanidade... Dançar pela rua sem medo que pensassem que posso ser louca também.
Perdi-me naquela dança distante, naquele ritmo ausente, consegui por momentos ouvir aquela música que só eles ouviam.
Estavam cada vez mais próximos um do outro. Encontraram-se e a dança cessou, como que uma coreografia ensaiada mas desempenhada ao improviso e ao acaso. E desceram a rua como se um sopro tivesse apagado a melodia que ambos escutavam.
A rua voltou a ficar escura. E eu não dancei.

Wednesday, December 13, 2006

Do Arco da Velha...

Do arco da velha tirei sem olhar
uma bailarina coxa que não sabia dançar

Do arco da velha peguei num tambor
pano rompido, mudo de dor

Do arco da velha veio-me à mão
o vestido manchado de um boneco chorão

Do arco da velha um papagaio em papel
sem asas, sem cores, sem tão pouco um cordel

Do arco da velha puxei um carrinho
com rodas já froxas de tanto caminho

Do arco da velha saquei um fantoche
uma rainha sem rei, sem trono, sem coche

Do arco da velha roubei uma lembrança
um sorriso meu quando eu em criança

Abrem-se os olhos
choro baixinho
lembranças - aos molhos!
de um tempo há um bocadinho

De um sorriso sem dentes, uma gargalhada
e o que se segue - uma trapalhada!

A bailarina já dança
já toca o tambor
já chora a criança
o papagaio - andor!

O carro já mexe
avança, recua
o fantoche tem rei
e um trono na Lua

Um bailado de sonhos
que só acabou
quando a velha o seu arco
na escuridão mergulhou.

Wednesday, November 29, 2006

À máquina...

Deixou de trocar-se correspondência... Já não se enchem folhas de papel com palavras desalinhadas, com uma pena molhada em tinta ou simplesmente com uma caneta... Já nem as Bic servem para isso...
As caixas de correio enferrujam porque têm saudades de sentir o cheiro da mão que escreve nas folhas que são obrigadas a engolir... Já esquecem a imagem dos selos com a figura de reis, viagens, cidades, terras, navios e povos...
É tudo à máquina - as letras são de máquina, cuspidas de uma hewlett packard, o selo é cuspido de um aparelho dos CTT a que ninguém dá nome e colado com um murro seco, os envelopes sao produzidos à máquina tão perfeitamente geométricos que até chateia, selados com a maior das impessoalidades e sem o vermelho do lacre. O cheiro é a máquina! Cada vez menos as pessoas deixam algo de si na ciber-correspondência que trocam. O trabalho com ela é cada vez menor. Até já se inventaram as cartas-modelo para que se perca o menor tempo possível nesta prática ultrapassada. A arte da correspondência tornou-se hoje um processo completamente mecanizado, uma cadeia de produção ritmada ao som da percussão das teclas do computador (outra máquina!!).
Mas eu quero escrever cartas... Quero que se saiba que fui eu que escrevi aquela carta porque é a minha caligrafia com as suas linhas imperfeitas, as rasuras em palavras que se começaram a escrever mas que depois se achou não ser a mais certa, talvez uma borratura a um canto, porque a bochecha da minha mão deslizou suavemente por uma sílaba de tinta ainda fresca.
Hoje vi o meu Pai a subir a Artilharia 1, espreitar para o enferrujado portão do velho Colégio dos Maristas onde andou, um bocadinho mais adiante espreitar pela janela da casa onde dormia o porteiro. "Ele pintava aqueles barcos... Era um artista..." Mais em frente, quase na esquina com a Joaquim António de Aguiar estava o sítio onde ele cortava o cabelo quando vivia ali perto: "Um dia vim aqui cortar o cabelo e quando cheguei a casa o Avô Borges mandou-me cá voltar para cortar mais porque ainda estava muito grande. E ali logo a seguir, onde está o toldo da Segafredo, era onde eu comprava batatas fritas". Depois foi continuando a descer até ao Marquês, olhando em volta como se fosse a primeira vez que pisava aquela calçada. Fotografando a Lx que já se despediu da Lisboa dos seus tempos de menino. Quando a vida ainda não se fazia à máquina.

Saturday, September 09, 2006

Cultura Geral...

A minha irmã mais "perruchita" chegou ao pé do mim há uns dias atrás e disse-me "Gracinha! Eu quero um livro de cultura geral!"... Isto deixou-me a pensar... Como explicar que não existem livros de cultura geral propriamente ditos, mas que a cultura geral se adquire em vários livros, revistas, jornais, acontecimentos, televisão, vivendo. Mas pensei na altura que também a mim me daria jeito a cultura geral em forma de livro... Para estudá-lo de fio a pavio, e poder empregá-lo num futuro quer mais próximo quer mais longíquo... Para que não ficasse calada e tímida e desconfortável em mais nenhuma conversa sobre o passado, o presente e o futuro. Utilizá-lo na próxima entrevista de emprego, na próxima candidatura a um dos sonhos da minha vida... Entrevistas... Aí está um fenómeno curioso... Que às vezes mais não é que uma grande perda de tempo... Há tanta coisa que podemos fazer, somos capazes de tanto, estudámos, trabalhámos, inventámos... E agora só queremos um sítio onde possamos mostrar o nosso real valor. Um valor do qual cada vez mais duvidamos, um valor que cada vez mais esquecemos... Simplesmente enferruja, como uma corrente de uma bicicleta velha que não utilizamos... E eu queria ter na cabeça o livro da cultura geral para sentir que não há nada que não saiba, que posso ir a uma entrevista do que seja, onde quer que seja, e a todos vou espantar com a dimensão do meu conhecimento. E então, só então, cheia dessa cultura geral, que nunca me deixaria sem resposta, que nunca me imporia limites, só então vou poder realizar esse sonho que ainda não realizei. Bah... Vou mas é ver o Benfica... Futebol é mesmo o assunto de todos os dias.

Friday, March 17, 2006

Encontrei-os em Estugarda...

"Bacalhau e meio, um dia destes o Inverno abala e já não estamos aqui a beber chá", disse ela pensando para os seus botões que Oberturkheim fica lá... em Oberturkheim... Ora assim seria difícil aventurarmo-nos pelas colinas acima... São tantas! Tantos Us por descobrir... Tantos sítios pitorescos... E logo aquela se foi apaixonar pelo Camandro, não é? Mas não foi no mesmo sítio... Nem tão pouco foi lá... em Oberturkheim... Foi no meio de um "Kolle Alaaf" que surgiram professores primários, piratinhas, e até, vá-se lá imaginar, informáticos economistas... Parte de um sonho que aos poucos vai-se esfumando, desaparecendo como quem não quer desaparecer... Mas se é mesmo para desaparecer, não há como entrar num S, aquele comboio que nem é "com" nem é "boio"... Apenas anda e nos leva onde é preciso levar... Seja por que dimensão for, seja por que realidade paralela for, ele anda e nós chegamos. Passamos por Kebabs, comemos Nuddelsuppes, encontramos bicicletas enferrujadas a 15 euros... Mas só nesse paralelismo surreal onde tudo o que existe lá, não existe cá... Assim é o S... E depois, que ninguém se enfie numa cabine de primeira classe, se o seu bilhete é de segunda! Não num comboio da Deutsche Bahn... Ah, e confiram sempre os vossos bilhetes, é que por cerca de 20 minutos o comboio não espera... Não... O comboio nunca espera por ninguém... Nem por aqueles que querem tanto, tanto, tanto jogar volleyball... Mas há sítios em que jogar volley não é mesmo para toda a gente... E há vezes em que nem sequer vale a pena cuspir para o chão... Ninguém nos ouve... Ninguém nos quer ouvir... Há vezes em que mais vale trepar até ao tecto sobre a nossa cama e ficar lá... Escondidinhos... E a passar despercebidos... Antes que haja bacalhau e que se monte uma grande confusão... Porque há alavancas que de uma maneira ou de outra, ganharam vida, e se impõem em escuros lances de escadas, assombrando os que aquela casa de coração aberto visitam... Elas só querem separar o lixo... Mas nem toda a gente isso percebe... Depois há também outros dias em que estamos bem no Pascal, bebendo muitas cervejas porque "in Heaven there is no beer, and therefore we must drink it here, and when we're gone from here, our friends will be drinking all the beer"... Jogamos também Poker a amendoins, e atirando amendoins ao ar, apanhando com a boca... Não há problema... O Pascal não se importa... Ele até nos oferece garrafinhas de licor de frutas, e corta sempre na conta. Depois o Albano que vem da Albânia também lá está... Enfim... "Ein Bretzel ohne Butter, bitte", disse a outra, rodeando-se de aliterações... "Ah, pois é, bebé", ainda há quem diga... E também há aquela voz simpática e desconhecida "Achtung, U2 nach Neugereut fahrt ein"... Não... Ninguém pára o Benfica... Assim o descobriram o Steve e o Jazz, que despedindo-se da Liga dos Campeões desde Liverpool, naquela cavezinha irlandesa, nos levaram a ouvir os Depeche Mode... (àqueles que puderam ir, claro)... Não há problema... A Joan vem cá, e eu vou lá estar... Não em Oberturkheim, mas lá (em Oberturkheim)... Além disso, todas as noite ela sussura-me aos ouvidos "Hush-a-bye, don't you cry, go to sleepy little baby"... E os dias vão-se passando... A milhares de kilómetros de casa... Onde há frio e neve quando em casa há sol e praia... Saudades? Quem não as tem... Quem não pensa nelas a caminho de casa, sozinho num U silencioso, quem não pensa no som dos sorrisos e gargalhadas da família e dos amigos que trazemos dentro de nós em cada aventura... Quem não sente o coração apertado quando o telefone se desliga, quando mais um adeus se profere, quando uma mensagem se recebe... Quem não os queria ter todos aqui à sua vez? Saudades... Saudades todos temos... E depois? Também de tudo isto um dia sentiremos um enorme vazio chamado Saudade.
"Nothing gold can stay"... by Robert Frost

Nature's first green is gold
Her hardest hue to hold
Her early leaf's a flower
but only so an hour.
Then leaf subsides to leaf.
So Eden sanks to grief,
So dawn goes down to day.
Nothing gold can stay.




Uma imagem...
Uma pessoa...
Uma imagem de uma pessoa
Cuja mente voa, voa...

Voa pela fantasia,
Voa pela ilusão
E ao aterrar no meio do chão
Dá um grande trambolhão...

Vive num mundo de engano,
Mas de esperança,
Será sempre uma criança
Que em sonhos dança,
Dança...

Viagem, fantasia, ilusão
Em sonhos sempre viveu
Quem é?
Sou eu.

(escrito em 1996)